8.19.2009

Alice.



A senhora dos gatos

É numa casa verde que ela mora. Uma casa grande, velha, suja, quase abandonada. Tem a porta sempre aberta, que não convida ninguém a entrar.
É lá que a senhora dos gatos vive.

Quando sai à rua, no seu vestido rosa, esteja frio ou calor, está sempre rodeada de gatos. Gatos de todas as cores e tamanhos.
O vestido velho e cor de rosa tapa-lhe os joelhos: tem pernas gordas e doentes. Tem braços gordos mas frágeis. O cabelo, castanho, curto, despenteado, não conhece mais nada a não ser as suas mãos, nas horas de desespero. O nariz muito pequeno segura-lhe os grandes óculos, e tem bochechas gordas, numa face redonda, que mal deixa ver.
Anda sempre de cabeça baixa. Não conhece o mundo. Só o chão e os gatos que a rodeiam, hora pós hora.

Passa todas as horas de todas as tardes a varrer o chão da entrada, como se esperasse visitas. Consigo até imaginar uma mesa bem posta, à espera de alguém. Todas as horas de todas as tardes, com os gatos a seus pés. Miam, roçam-se e olham-na. Varre o chão da entrada com os olhos vidrados no chão, durante muitas horas.

Sempre, sempre de cabeça baixa. Houve dias em que passei por ela e pareceu-me ouvir uma espécie de melodia que cantava enquanto varria o chão. Pela primeira vez, os gatos pararam a ouvi-la, e olharam-na com os seus pequenos olhos, pequenas pedras preciosas de todas as cores, maravilhados.

Quando alguém passa e diz "Boa Tarde", ela responde, com uma voz doce e muito jovem, sem tirar os olhos do chão, perturbada.
A senhora dos gatos, não lhe sei o nome, mas Alice ficava-lhe bem.

Quando o sol morre, Alice volta para a casa verde e há uma luz quase morta que se acende. Não tem cortinas nas janelas, por isso vejo-lhe as paredes da casa. Paredes mortas que a luz mata ainda mais. Aquela luz fica acesa durante muitas horas na noite, e por vezes, na madrugada, ainda estão acesas. Continuam as paredes mortas, e Alice, não sei onde está, nem o que faz. Nem sequer ouço o som da televisão, típico das casas de senhoras sozinhas. Mas Alice tem alguém. Há um senhor magro e alto, de cabelo grisalho e feições perfuradas pelo tempo...

...mas só lhes ouço o silêncio.



Alice caíu.

Era hoje, era uma manhã como outra qualquer.
Alice estava, como sempre, de cabeça baixa, rodeada de gatos, a limpar o chão da entrada.
O carteiro chegou e, rápido, entregou-lhe folhetos coloridos de publicidade e dois ou três ou quatro envelopes, e desapareceu no final da rua.

Na sua tristeza natural, ela revoltava com os olhos a correspondência que recebera, abriu o último envelope e o seu peito gelou. A sua face redonda ficou pálida e as pequenas pernas tremeram.

Ficou durante aquele que parecia todo o tempo do mundo com o envelope aberto na mão. A sua mão tremia e a sua expressão era cada vez mais cinzenta. Não levantou os olhos do envelope aberto, a carta, as palavras que matavam.
Os gatos pararam e olharam-na, surpresos.
Alice caíu.



Alice?

Tinha eu acabado de chegar a casa, deitei-me para apagar as terríveis dores nas costas e adormeci no meu pensar. A campainha tocou.

Quando vi Alice do outro lado da porta, não quis acreditar. Pensei "Alice?"...Aquele sorriso deve ter sido a maior surpresa que já tive. Nunca a tinha visto tão perto. O sorriso escondia a mulher triste que eu tinha em mente. Pensei que me quisesse dizer algo muito importante, mas afinal, as palavras que se escondiam naquela voz doce eram apenas que tinha encontrado algo que o meu tio perdera no dia anterior, e vinha para mo devolver.

Pelas palavras, pelos gestos e por toda a atenção, percebi que Alice não falava muitas vezes, com muitas pessoas. Tinha um entusiasmo cintilante nos olhos, como quem esteve presa durante anos, sem ver ou falar com alguém. Repetiu o discurso dezenas de vezes "Olhe, se precisar de alguma coisa..." sempre a mostrar um sorriso tonto, sem razão alguma. Como se eu fosse a primeira pessoa com quem ela falasse, em toda a sua vida. O cabelo velho e a face muito redonda, num sorriso envergonhado de inocência senil.

Desceu as escadas devagar e baixou a cabeça. Os gatos rodearam-na.

Alice voltou ao seu silêncio.



O velho amor de Alice.

Como estranhos, Alice e José ignoram-se.
Ignoram-se, ignorando o amor que um dia existiu.
Vagueiam pelas traseiras da casa, e olham o chão. Talvez vejam no chão, o olhar um do outro.
Procuram no chão, o amor que perderam, que o tempo lhes levou.
Procuram no chão, palavras perdidas.

Existem dias, como noites, em que existe uma troca de palavras, frias, como lâminas, como facas profundas na alma de Alice.
Olha o chão, parecendo contar nele todos os dias e todos os anos de quando não olhava o chão, de quando conhecia o mundo. De quando conhecia todos os pormenores da face de José. De quando lhe conhecia o brilho nos olhos, o sorriso, o amor. Agora, há muito que não reconhece José.
Quando pensa no amor que perdeu, Alice baixa mais o olhar e respira fundo, duas vezes.




Alice e Madalena.

Foi há muito tempo. Nove meses que Alice trouxe Madalena dentro de si. Todos os dias se sentava em frente à pequena janela e cantava uma canção "Vai começar, a nossa viagem, A-todos-os-meninos-digo-a-deus."
Alice olhava o céu, olhava os gatos, imaginava como seria Madalena e sorria. José ainda era jovem: cabelo bem arranjado com brilhantina, como os homens na televisão, pele macia e brilhante. Sorria. De vez em quando, ele passava e sentava-se no chão, ao lado de Alice. Nessa altura, nenhum deles precisava de procurar ou imaginar palavras ou olhares no chão: ambos adormeciam eternecidos no olhar um do outro. E eram tão verdadeiros: quando José sorria, Alice sorria também e escondia a cara, envergonhada. Dentro deles havia uma inexplicável vontade de sorrir.

Hoje, enquanto varre o chão da entrada, Alice lembra-se do dia em que Madalena, nasceu. "Vai começar, a nossa viagem."
Algo de muito errado se passava.

Passaram-se 35 anos. Madalena é pequena e gorda como a mãe. Tem cabelos curtos, louros e uma pele pálida com pequenas manchas cor-de-rosa. Passa os dias sentada em frente à pequena janela e canta "...a todos os meninos digo adeus" e sorri muitas vezes. Quando sai à rua, volta num carro vermelho, cheio de sacos e diz "Olá Mãe!" com o maior e mais inocente dos sorrisos, e volta para a frente da pequena janela. Recomeça a cantar.
Lá em baixo, José passeia um cigarro amargurado por entre os dedos e Alice varre o chão da entrada. Os gatos rodeiam-na, carinhosos.

José vive os dias num cigarro, debaixo da sua camisa gasta e sem botões, e do velho chapéu cinzento. As calças rotas e as botas cheias de terra. Todos os dias se senta por baixo da velha oliveira, baixa a cabeça, fuma o cigarro. Merda de vida.


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"Alice" é um conjunto de textos escritos na primavera de 2007, durante longas noites. Quis pegar neles outravez e adaptei-os ligeiramente. As fotos neste post são da minha autoria.

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